Em 1987 celebrou-se em Portugal o bicentenário da morte de José
Anastácio da Cunha. Talvez porque ele foi injustiçado em vida, nós
tenhamos querido, como povo, reparar essa injustiça. Mas não só: o
grande movimento nacional então gerado com as diversas celebrações
que ocorreram nas Universidades de Évora, Coimbra e Lisboa, com a
participação de matemáticos e historiadores nacionais e estrangeiros, teve,
principalmente, como objectivo, homenagear um grande português que
foi matemático, que foi poeta e que foi um inovador no campo das
ideias então vigentes. Muito se disse, muito se escreveu. Dois livros
foram publicados contendo as comunicações dos intervenientes Nota1.
Acompanhámos emocionados o percurso da sua vida: seu nascimento
humilde em Lisboa em 1744; sua educação na Congregação do
Oratório; alistamento aos 19 anos no Regimento de Artilharia do
Porto aquartelado em Valença do Minho; a vida exaltada e apaixonada
que lá viveu; o contacto com os oficiais estrangeiros de ideias liberais,
muitos deles protestantes, que então lá se encontravam; os amores
pela jovem Margarida cantada e sublimada em muitos dos seus versos;
a fama da sua cultura matemática que, através do Conde de Lippe,
chegou aos ouvidos do Marquês de Pombal; o convite que este lhe
dirigiu em 1773 para lente de Geometria na recém-criada Faculdade de
Matemática da Universidade de Coimbra; a vida em Coimbra e,
depois da queda do Marquês, a sua prisão pela Inquisição em 1778,
seguida de julgamento e condenação; os libelos acusatórios de
livre-pensador, herege, libertino.
Os últimos anos da sua vida decorreram em Lisboa, como professor
dos alunos da Real Casa Pia, depois de uma parte da pena lhe ter sido
perdoada.
Aprendemos a conhecê-lo melhor, aprendemos a amá-lo. A obra
matemática foi divulgada, bem como vários estudos e apreciações
críticas que ela tem merecido; registámos, orgulhosos, um elogio
de Gauss Nota2, um dos maiores matemáticos de todos os tempos; a
obra poética foi objecto igualmente de muitos comentários; foi destacada
a apreciação que já tinha merecido de Fernando Pessoa Nota3.
No campo das ideias, Anastácio da Cunha viu mais longe que muitos
dos seus contemporâneos; talvez os olhasse com um olhar
desencantado, mas não obstante isso, ou talvez por isso, não deixou de
os amar Nota4. Então, as celebrações nacionais de 1987 foram como
que um ponto de partida para um estudo mais profundo de José
Anastácio da Cunha, um estudo mais entusiástico e de gosto
renovado, porque mais esclarecido e mais fundamentado.
Decidiu então o recém-criado Seminário Nacional de História da
Matemática que "a vida e obra de José Anastácio da Cunha
fosse o tema prioritário para 1988".
Assim, no âmbito da cadeira de Historia da Matemática
da Licenciatura em Ensino da Matemática da Universidade do Minho,
com um grupo de estudantes de 1987-88, decidi continuar as
pesquisas sobre José Anastácio da Cunha.
Os jovens e entusiastas estudantes deslocaram-se a Valença do Minho,
procurando mais informação sobre a sua vida.
Porém, além da simpatia das pessoas que os acolheram, nada
encontraram de novo.
A mim coube-me a pesquisa nas Bibliotecas de Braga e no Arquivo
Distrital de Braga. E foi então que no Arquivo, ao lado de um
manuscrito da obra poética de José Anastácio da Cunha, encontrei um
outro manuscrito intitulado " Ensaio sobre as Minas",
inédito até então.
De facto, logo na 1.a página, num canto, em letras pequeninas
manuscritas e a vermelho, lê-se esta anotação: "Inédito, sobre o
notabilíssimo autor deste livro ver Inocêncio, Tomo 4, pág. 221 e
seguintes. Inocêncio desconheceu a existência deste inédito".
De facto, esta obra não é citada no Dicionário Bibliográfico
Português de Inocêncio Francisco da Silva Nota5, na lista dos
trabalhos de José Anastácio da Cunha. Contudo, há pelo menos três
referências a este Ensaio que passamos a citar, por ordem cronológica.
A 1.a é uma citação do próprio Anastácio da Cunha na Carta
Físico-Mathemática Nota6, acabada em 5 de Novembro de 1769 e mais
tarde publicada no Porto, em 1838. Na pág. 29, numa nota inserida
dentro de parêntesis, lê-se: "ainda que sobre as minas nada pode
determinar ao justo, como mostrei em hum particular Tratado".
Parece poder concluir-se que esse particular Tratado fosse o
Ensaio sobre as Minas. Uma 2.a referência é-nos dada em
O Processo de José Anastácio da Cunha Nota7. Na pág. 73,
num fragmento duma carta escrita por João Baptista Vieira Godinho
a José Anastácio da Cunha, em 1771, lê-se: "em volta deste
correio me remetesse hum extracto das suas obras -- Arithemetica
Universal -- Ensaio das Minas ou a sua Dissertação -- Ensaios sobre a
Pyrrotecnia -- etc. com toda aquella intimativa que faça bem conhesser
o espírito de cada Obra".
Parece inequívoco que este Ensaio das Minas seja o Ensaio
sobre as Minas que então encontrei.
A 3.a referência é ainda feita pelo próprio José Anastácio da Cunha,
numa das cartas da sua defesa contra as acusações de que foi alvo na
Questão entre José Anastácio da Cunha e José Monteiro da Rocha Nota8,
comentada por António José Teixeira: "Pediu-me o
capitão de mineiros do meu regimento a minha opinião sobre o que
vários autores tinham publicado acerca das minas: dei-lha por escrito
muito sem segunda tenção, que nem deixei em meu poder cópia.
Entre outras coisas mostrei alguns erros de Mr._Dulacq, autor que o
marechal tinha recommendado aos artilheiros e engenheiros, o que
nem eu nem talvez pessoa alguma do meu regimento então sabia.
Depois passando o marechal por Almeida aonde eu estava, houve
quem inocentemente e cuidando que me fazia um grande bem,
ofereceu a minha dissertação ao conde de Lippe, que
naturalmente se julgou insultado. Apezar de partir então para
Buckembourg ainda duvidoso da minha innocencia, deixou
recommendado que se me dobrasse o soldo e me adiantassem".
Por aqui parece poder concluir-se que foi o Ensaio sobre as
Minas que impressionou tão fortemente o conde de Lippe a favor de
José Anastácio da Cunha, que por isso o terá elogiado ao Marquês de
Pombal, enaltecendo o seu saber e as suas qualidades.
São disso testemunhos a decisão do Marquês de nomear
Anastácio da Cunha lente de Geometria da Universidade de Coimbra,
por provisão de 5 de Outubro de 1773, e as cartas elogiosas que
sobre ele escreveu ao então reitor da mesma Universidade,
D. Francisco de Lemos Nota9.
Conforme José Anastácio da Cunha afirma na carta acima transcrita,
nem sequer ficou com cópia do manuscrito do Ensaio sobre as
Minas. Alguém mais tarde a terá feito. Desconhecemos
os caminhos que a levaram à Biblioteca do Conde da Barca, donde
transitou para o Arquivo Distrital de Braga, onde a encontrei.
O achado foi de imediato comunicado aos membros do Seminário
Nacional de História da Matemática que a acolheram com alegria.
Nomeadamente, os participantes do Encontro desse Seminário, que em
1988 se realizou no Departamento de Matemática da Universidade do
Minho e que teve como convidado o Professor
Ubiratan d'Ámbrósio, tiveram a oportunidade de ver o manuscrito, por
gentileza do Arquivo Distrital de Braga.
Desde logo se pensou na edição, mas o processo havia de ser lento.
Primeiro, porque na altura eu tinha outros trabalhos urgentes a ultimar,
depois porque tal empresa requeria a colaboração de pessoas e
Instituições diversas.
Dos primeiros contactos com o manuscrito, especialmente a partir dos
erros na grafia de palavras de origem francesa e nas expressões
matemáticas, onde José Anastácio da Cunha não podia ter errado, ganhei
a convicção de que não tinha em mãos o trabalho original, mas uma
cópia.
Daqui ter-se decidido fazer uma transcrição e não uma edição fac-símile;
mantiveram-se apenas as estampas, as tabelas e a folha de rosto
conformes às da cópia.
Antes, porém, de dar inicio à citada transcrição, parece pertinente
apresentar ao leitor alguns comentários sobre a mesma.
1. Características gerais da Obra.
José Anastácio da Cunha inicia o Ensaio sobre as Minas por
aquilo que ele chama Instrucção, espécie de prefácio, em que afirma a
não existência de Obras em português sobre o assunto e em que se refere
a trabalhos vários de autores estrangeiros, uns que critica, outros que
elogia.
Faz fortes advertências aos leitores desprevenidos para que não se
deixem facilmente impressionar por palavras como
"demonstração", "evidência", "provarei", etc, que
muitas vezes só servem para esconder os erros e mascarar a ignorância.
Deve notar-se que uma advertência perfeitamente análoga se pode ler na
página 25 da Carta Físico-Mathemática Nota10.
É ainda na Instrucção que afirma que o trabalho está dividido em três
partes.
A 1.a parte constitui a Teoria de José Anastácio da Cunha sobre as
minas; é como ele diz, "o que posso chamar inteiramente meu neste
papel". Contudo, como acrescenta, para tornar inteligível essa Teoria,
pareceu-lhe necessário fazê-la preceder de um estudo das secções
cónicas, o que ele chama "Preparação".
Manifesta a sua preferência por métodos gerais sobre os particulares e,
neste caso, por um método geral de tratamento de todas as cónicas, em
vez de tratamentos particulares para cada uma delas.
Então, na Preparação caracteriza as cónicas à maneira de Pappus Nota11,
como lugares geométricos de pontos tais que a razão das distâncias a uma
recta fixa (directriz) e a um ponto fixo (foco) é constante. Utiliza um
sistema de eixos ortogonais em que um dos eixos contém o eixo maior da cónica,
e o outro a tangente num dos vértices; a directriz
é então paralela a este último eixo.
Anastácio da Cunha chama
p
e
q
às distâncias do vértice, que
coincide com a origem, à
directriz e ao foco, respectivamente. Daqui, é imediato reconhecer que a
razão